2023 é um ano marcante. Mas não da forma que a gente imaginou.
Nenhuma temporada de um time de futebol profissional em nosso país, talvez no mundo, foi de um extremo a outro como o turno e returno do Botafogo no Brasileirão de 2023.
Time algum jamais alternou euforia e decepção com tamanha intensidade em um mesmo campeonato. E no mesmo jogo. E no minuto final dos mesmos acréscimos.
Ninguém está preparado emocionalmente para isso. Porque é um fato incomum não apenas no futebol.
O que passamos é muito raro de ser vivido no dia-a-dia, no trabalho, nas férias, na família. Milhões de pessoas nascem, vivem e morrem sem passar por emoções tão intensas – e antagônicas – como as que tivemos de enfrentar em um curtíssimo espaço de tempo. Como seu chefe te chamando na sala dele para falar: “Você foi promovido!” e, logo depois de uma ligação pra comemorar com pai-mãe-filho-filha-namorado-namorada, você ser chamado no RH para escutar de um colega: “O chefe se enganou: você foi demitido.”
O impacto de um tranco intenso – e súbito – é algo muito sério. E que não pode ser menosprezado com o argumento de que “isso é apenas futebol”.
O que ocorre no campo é “apenas” futebol. Mas o que acontece com a gente por causa do que aconteceu no campo não é.
Não me arrependo de ter participado com a nossa torcida, ainda que à distância, das festas que fizemos no Nilton Santos e em muitos jogos como visitante. Era pra festejar, mesmo! Não comemorávamos conquista. Celebramos o prazer de vencer, os gols do Tiquinho, a visão de jogo do Eduardo, as arrancadas do Júnior Santos, a onipresença do Tchê Tchê, os desarmes do Adryelson, as defesaças do Perri. Mas era mais do que o que estava no campo. Era o que compartilhávamos na torcida. Claro que vislumbrávamos a possibilidade cada vez mais concreta de levantar a taça, mas tenho certeza que a alegria maior vinha do que experimentávamos no aqui-e-agora. E com milhares de irmãos de camisa. Com eles, com a Estrela no peito, fomos felizes (e, se os deuses quiserem, com eles ainda seremos).
Ninguém amou o momento de um time como a gente.
Nos sentíamos eufóricos pelas vitórias, pelas atuações, pelas festas, pelos mosaicos, pelas danças, pelos memes, pelas músicas da própria torcida. O Botafogo, e aqui novamente não falo apenas do que acontecia em campo, era um lugar melhor para se viver.
Time e torcida estavam na mesma sintonia. Estávamos encantados.
Após a saída de Luís Castro, o encanto começou a se dissipar.
E veio o doloroso confronto entre expectativa e realidade.
O Botafogo despencou diante de nossos olhos, sem que pudéssemos fazer nada para evitar a queda.
A espiral em descendente alternou ritmos: às vezes era em slow motion, como na desinteressada atuação na continuação, com os portões fechados, do jogo contra o Athletico-PR. Mas tinha também acelerações com solavancos bruscos. Esses foram os momentos mais perigosos. Ninguém passou intacto aos minutos finais que destroçaram os nervos e aceleraram os batimentos cardíacos em diversas partidas do returno.
A insônia foi o menor dos problemas que enfrentamos depois desses jogos.
Como se recuperar emocionalmente do fato de termos testemunhado, na mesma partida, o Botafogo ter no primeiro tempo o desempenho coletivo de um Brasil 1970 (a ponto de muita gente dizer que jamais tinha visto o seu time jogar tão bem) e, na segunda etapa, se transformar em um Brasil 2014, mais especificamente do 7×1 no Mineirão, encolhido nas cordas até o nocaute no último minuto dos acréscimos?
Passamos dos estados de graça à desgraça em 90 minutos.
E teve ainda a piscadinha do Marlon Freitas. A imagem-símbolo do Brasileirão de 2023.
Atitude arrogante de quem ‘cavou’ uma falta e achava que, assim, garantiria o empate.
Mesma arrogância de quem pertence ao grupo que pediu a cabeça do treinador e deve ter garantido ao Textor que eles, com Lúcio Flávio e Joel Carli (ou seja, sem o mínimo de experiência no banco de reservas), iriam segurar a vantagem até a conquista.
“Deixa com a gente, boss!”, devem ter falado na reunião que selou o futuro do Bruno Lage e, de certa forma, também selou o nosso futuro. Não pela saída do Lage, que parecia inevitável pela falta de leitura do treinador português da realidade do futebol brasileiro, como demonstrou na desastrada coletiva após a derrota no clássico pro Fla.
A piscadinha do volante foi acompanhada de um sorriso inaceitável pra quem tinha 3 gols na frente no fim da partida e deveria estar 100% concentrado no jogo.
Olhem o cronômetro no alto, olhem de novo um dos olhos fechados.
Marlon piscou e a derrota chegou.
Mal tivemos tempo de nos recuperar. Menos de uma semana depois, disputamos um clássico em São Januário e o “Capitão Marçal” (muitas aspas) teve a desfaçatez de dizer após a derrota que os jogadores não entraram concentrados. Como assim? Como não focar no trabalho depois de tomar três gols em menos de 15 minutos na partida anterior? Pois foi assim que eles entraram. E repetiram a desconcentração, no mesmo estádio, no segundo tempo contra o Grêmio. De novo, uma virada-relâmpago depois de abrir vantagem que um time de futebol profissional, em qualquer liga, em qualquer divisão, tem obrigação de manter.
Não parou por aí, contudo.
Já tínhamos deixado a vitória escapar contra Bragantino e Santos.
Mas aconteceria algo ainda pior, ainda mais desgastante, ainda mais desmoralizante. Que, se fosse cena de filme de ficção, todos os espectadores diriam que o roteirista havia pesado a mão.
Tivemos de viver a mesma alternância de emoções de uma forma ainda mais dramática na partida contra o Coritiba. Só que em versão editada pro TikTok: em menos de um minuto, passamos, novamente, da euforia e do despertar de uma (leve) esperança para a raiva trazida pela perplexidade de ver o time tomar um gol logo após a saída de jogo, nos últimos segundos do último minuto dos acréscimos.
Quantos times já passaram por uma situação assim no futebol mundial? Poucos, pouquíssimos, talvez nenhum antes do nosso. Por causa de uma série de erros, da diretoria aos jogadores, fomos nós os ‘escolhidos’.
E, para culminar, no último domingo, mesmo com o apoio da torcida até o último jogo em casa, com 15 mil testemunhas de mais uma atuação frustrante, tivemos mais um jogo sem vitória. Outra decepção para a torcida que foi, no returno, castigada e machucada simplesmente porque acreditou que seria correspondida no “maior amor do mundo”.
O que temos conosco ao final da temporada? Não o que a gente sonha desde 1995, mas uma marca negativa que virou notícia até em jornais e sites internacionais.
Ganhamos uma cicatriz.
Antes, éramos um time conhecido fora do Rio de Janeiro pelos inúmeros ídolos, pela tradição, pela história gloriosa.
Agora, não. Somos o time que perdeu o campeonato mais ganho da história dos pontos corridos.
Uma história real, ocorrida no último domingo: um botafoguense pegou um uber em Porto Alegre que estava escutando Grêmio x Vasco. O motorista perguntou ao passageiro qual era o time dele.
“Sou Botafogo.”
O motorista, então, começou a rir. Continuou por um minuto. Repito: um minuto de risadas do motorista do Uber no Rio Grande do Sul que, antes de 2023, não tinha motivos para debochar de um torcedor botafoguense.
Criamos um paradigma no futebol mundial. Recordista de pontuação no turno, pontuação de rebaixado no returno. Dependendo de quem estiver falando, “Botafogo de 2023” será uma referência, um alerta, uma piada, uma citação, um ponto de exclamação, uma tristeza e um escárnio.
Essa é uma marca impossível de ser removida. Vai nos assombrar a cada início, meio e fim de campeonato.
Carregaremos a cicatriz de 2023. Não vai desaparecer. O que John Textor, diretoria, comissão técnica, futuros e atuais jogadores podem fazer é tentar cobri-la com glórias ao transformá-la em um fato isolado.
Mas, mesmo com as futuras conquistas (se vierem), a cicatriz continuará lá. Aqui. Dentro da gente.
Fotos: Vitor Silva e reproduções de TV