Domingo, pouco depois de 18h, oeste inferior do Engenhão:
* O placar eletrônico, com letras vermelhas em fundo preto (que mau gosto), anuncia: “Sejam bem-vindos ao Stadium Rio”.
* De repente, entra uma excursão de estrangeiros, com guias e tudo. Uns 50 jovens gringos ocupam quatro fileiras, recebem orientações de como torcer pelo Botafogo. No casaco de um deles, a dica da procedência: Seattle United. Têm até bandeirão. Parecem felizes enquanto se entopem de salgadinhos e Biscoitos Globo.
* Trio de arbitragem em campo. A calva do juizinho brilha igual ao do Triguinho. Mau presságio.
* Biriba e Biruta. Qual dos dois é o mais sem-graça?
* O gramado já está bem melhor do que na semana passada.
* Torcedores ao meu redor: 80% com a camisa alvinegra tradicional, a maioria comprada nos últimos anos (Liquigás, Kappa) ou nos últimos meses (somente Fila). Muitos têm camisa personalizadas. Vejo um com o nome de Maicosuel nas costas, já com o número 7. Outro misturou o sobrenome com o de um dos maiores ídolos atuais: ficou Loco Vilhena. Muitas famílias, muita gente mais velha. E também muitos sotaques – dá pra perceber que há torcedores de outros estados, não apenas cariocas.
Domingo, 18h30
* Começa o jogo. E o telão ainda está apresentando a escalação do Guarani.
* A torcida incentiva e aplaude tentativas infrutíferas de Somália, Herrera, Fábio Ferreira e até bola isolada pelo Fahel. Alessandro, sempre com muita vontade e sempre limitado, é assim incentivado: “Vai, cabeção!”
* Joel fica em pé, no limite da área reservada aos treinadores. Muitas vezes, dá um passo para fora do seu limite e lá fica observando. Anota muita coisa na prancheta. Para um torcedor do meu lado, anota até demais:
– Joel, larga a prancheta e olha o jogo, Joel!
* Caio começa a perder divididas. E começa a cair. Muitos, com menos de 20 minutos, já perderam a paciência e gritam – o tempo inteiro – contra o centroavante.
– Caio, você tá parecendo uma p*ta! Só trabalha deitado!
– Vai cair de novo, né, filho da p*ta! Vai se f*!
De longe, é o jogador mais hostilizado pela torcida. Quando, enfim, faz uma boa jogada e rola a bola para Herrera, que perde o gol, ninguém reclama do argentino. Alguns passam todos os minutos gritando contra o Caio. E, quando ele é derrubado fora da área após driblar o oponente, não é perdoado:
– Por que não caiu dentro da área, filho da p*ta! Nem pênalti você consegue arrumar!
Aí Caio é desarmado, perde bola no ataque e, no contra-ataque rápido e mortal, o Guarani abre o marcador. Os gritos contra o centroavante se multiplicam, divididos também com os xingamentos a Joel:
– Joel, ensina pra esse fdp que futebol se joga em pé, Joel! Tira esse merda e põe o Jobson, Joel!
O time passa a ser vaiado ao ter o domínio da bola. Alguém grita-desabafa:
– Meu Deus, como é triste ver o meu Botafogo perder pra um time desses…
Joel olha para trás e encara a torcida. Por quase um minuto, esquece do jogo e fica olhando os torcedores. As vaias aumentam e ele segue encarando os torcedores.
As vaias agora são bem mais fortes. Lucio Flavio passa a ser o alvo mais visado. Ele se esconde ainda mais do jogo, deixa Somália assumir a responsabilidade de tentar alguma coisa. O camisa 10 deixa as cobranças de falta para Marcelo Cordeiro. Agora só se encarrega dos escanteios. No último lance do primeiro tempo, bate na cabeça de Danny Moraes e vem o empate. O time sai do campo sob muitas vaias.
Intervalo
* O Pereirinha se levanta e volta com uma boa notícia: o banheiro está razoavelmente limpo. O feminino também, me assegura a Madame Pereira.
* Torcedores participam da promoção “Sou Craque” no meio do gramado. Um deles, de cabeça branca, mostra domínio de bola e sai comemorando. Ganha aplausos e um grito: “Entra no lugar do Alessandro!”. Seriam as últimas risadas do dia.
* Jefferson volta antes dos colegas e faz aquecimento em separado. Reflexos em dia.
Segundo tempo
* Primeira alteração alvinegra. Torcida comemora: “É Jobson, é Jobson!”. O atacante faz duas boas jogadas, depois duas finalizações bisonhas. Praticamente não é acionado.
* O time não consegue articular nenhuma jogada. A impaciência da torcida aumenta. Novo grito:
– Bota o Edno, Joel!!
* O Guarani começa um festival de cai-cai. E o juiz faz tudo errado: inverte faltas, deixa de marcar pênalti, ignora vantagens, apita na hora de silenciar. Leva à loucura torcedores e jogadores – é o único ponto de união entre nós, do lado de fora, e eles, do lado de dentro.
* Edno vai para o jogo. Lúcio Flávio evita cruzar o campo para cumprimentá-lo. Sai de fininho, por trás do gol. Alguns percebem a manobra e conseguem vaiá-lo.
* Somália, agora cansado, também não consegue mais acertar passes. O time desmonta de vez e passa a tentar chutões. Cada vez mais de longe, como alerta um torcedor desesperado, bem atrás de mim:
– Olhaí, o Jefferson vai fazer a principal jogada ensaiada do Botafogo! Atenção, atenção!
O goleiro, visivelmente impaciente, pega a bola e dá um chutão para o ataque. Logo a bola está novamente sob posse do Guarani. O torcedor conclui:
– Não falei?! Taí a jogada mais perigosa do Botafogo!
* O Botafogo tem, nesse momento, um ataque formado por Jobson-Caio-Herrera -Edno. Os dois primeiros deveriam cair pelas pontas, o argentino ficaria no meio e o jogador de rúgbi viria um pouco mais de trás. Eles não conseguem se entrosar em nenhum instante. Um passe errado de Herrera mata uma tabela que poderia render um ótimo ataque; é o resumo do desentrosamento.
* Caio dá lugar a Renato Cajá. Toma muitas vaias ao passar em frente às arquibancadas e segue direto para o banco. Cajá logo passa a ocupar o lugar de Lúcio Flávio – não produz rigorosamente nada.
* Últimos minutos. Nada há de tática nem de técnica. Marcelo Cordeiro consegue acertar um cruzamento mas o bandeirinha vê impedimento. Na única vez que o juiz dá vantagem, Jobson erra o cabeceio que garantiria os três pontos – injustos, diga-se de passagem. O comentarista da CBN, Álvaro Oliveira Filho, resume o que foi o jogo: “Nenhum dos dois times merecia ter marcado ponto – devia ter sido zero pra os dois lados”.
Fim de jogo
Muitas vaias. Quase todos os jogadores correm para o vestiário. Alessandro é exceção. Prolonga ao máximo a sessão de entrevista, fica quase 10 minutos do lado de fora, atendendo à imprensa.
* Saio do estádio, tão bonito e majestoso de noite quanto de dia. Passo pelas estátuas de Nilton Santos e Garrincha.
Fico aliviado quando percebo que eles estão voltados para fora e não puderam observar o que se passou lá dentro.
Na saída, vou escutando as reclamações de outros alvinegros.
– Ficaram duas semanas na Granja Comary treinando pra fazer esse papelão? O que é que o Joel treinou lá?
Concordo com eles. O mais assustador, no momento, não é a limitação técnica – pois essa já é conhecida desde o início do Carioca. Mas impressiona a falta de opções táticas.
Ligo o rádio e ouço Joel dizendo que colocou quatro atacantes no segundo tempo e que ainda assim a torcida reclamou. “Só se botasse o presidente também no ataque”. Ele também, discretamente, ironiza a torcida: “Toda torcida tem suas características, mas a do Botafogo é mais… apaixonada que as outras. Sei disso desde 1997, quando passei por aqui pela primeira vez”.
Não gosto desse tom utilizado pelo treinador. Não gosto de outras coisas que ele disse antes e depois do jogo. E, principalmente, não gostei do olhar que ele mandou para nós, que pagamos ingressos, porque estávamos vaiando a péssima apresentação do time que ele é pago – e muito bem! – para comandar e, no mínimo, apresentar um futebol digno da camisa que estava em campo.
Eis o tema do próximo post – e, prometo, será bem mais curto do que esse relato…
Fotos: FogoEterno