A torcida do Botafogo não existe mais

Meu time é do Rio de Janeiro. Eu, não. Aí começa o meu problema.

Tenho poucas, pouquíssimas chances de ir ao estádio para ver o meu time. Na semana passada, a tabela me ofertou a oportunidade de assistir a dois jogos consecutivos do Glorioso (tudo bem, foram dois empates, mas como estive na sensacional vitória em cima do Cruzeiro no ano passado, naquele show do Seedorf, acho que ainda não posso ser chamado de pé-frio). Pude observar o comportamento dos torcedores alvinegros em duas situações: uma, como visitante, no Independência. Outro, como mandante, mas bem longe de sua sede — e da maioria de seus torcedores — no Mané Garrincha. Ambas as situações, mais experiências anteriores no Maracanã e no Engenhão e o acompanhamento sistemático de manifestações alvinegras pelas redes sociais (inclusive neste blog), me permitem arriscar: a torcida do Botafogo não existe mais. Ou melhor: não existe mais “A torcida do Botafogo”. Talvez até nunca tenha existido. E isso é muito bom.

Antes de ser atingido por um copo de cerveja (sem álcool, se for arremessado de dentro do estádio) ou pelo ataque virtual de um Black (and White) bloc, tento explicar a frase. Vai ser um pouco extenso, talvez mais longo do que a adaptação do Rafael Marques ao futebol brasileiro, mas vamos lá.

Já vinha matutando sobre o assunto há algum tempo, mas resolvi compartilhá-lo após a “polêmica” sobre a falta de apoio ostensivo dos brasilienses no jogo de sábado. O ponto principal é que, ao contrário do perpetuado por boa parte da imprensa (e também por muitos de nós), os botafoguenses não podemos (mais) ser classificados sob um mesmo rótulo. Nossa torcida não cabe no clichê. Ainda mais quando, na embalagem, vêm etiquetados os adjetivos “ressabiado”, “crítico”, “pessimista”, “exigente”. Penso que esse balaio de tarjas até ajuda a definir um grupo expressivo de botafoguenses — estou nele — que têm entre 30 e 50 anos e não viram muitas taças, incluindo estaduais, serem erguidas (aqui uso o eufemismo). Mas não dá para falar mais de “A torcida do Botafogo” como um grupo uniforme, que reage sempre da mesma forma e têm as mesmas manias, temores e inquietações.

Tomemos, por exempo, o grupo ao qual pertenço. Somos céticos por natureza, por razão simples. Somos os filhos da abstinência: tivemos que atravessar um deserto enquanto outros se regalavam com sushis, peixes nórdicos e frutas. Por isso, ouso dizer que nunca fomos tão felizes como no dia em que Maurício tirou nossas amarras. Com Túlio Maravilha, em 1995, foi uma comemoração; em 1989, foi mais do que uma celebração, foi uma libertação. Porém, vivenciamos algumas (muitas) frustrações nos ombros, talvez a maior delas o vice da Copa do Brasil, contra o Juventude, em 1999, quando um gol solitário teria lavado a alma daquele Maracanã lotado e ajudado a diminuir a cruel desproporção entre a nossa história gloriosa e o número de títulos expressivos conquistados. Por tudo isso e mais um pouco, a máxima de que o botafoguense é, antes de tudo, um desconfiado acaba sendo a mais divulgada e criou raízes entre os formadores de opinião. Muitos jornalistas, por exemplo, a repetem por escutá-la em conversas com botafoguenses, alguns deles também jornalistas. Mas essa não é A torcida do Botafogo. Não por inteiro — e está muito longe de sê-lo.

Boa parte dos torcedores que encontrei em BH e BsB, por exemplo, faz parte de outros grupos. E é sobre eles que falo aqui. No Horto, com presença de muitos cariocas e de moradores da capital mineira, a turma presente gritou o tempo inteiro. Fez mais: provocou os donos da casa (“1, 2,3, essa p*rra é freguês!”), cantou músicas de incentivo, desfiou o Hino por seguidas vezes, enfim, jogou junto, vibrando a cada lance e contagiando o grupo encalacrado no íngreme e insalubre setor superior do estádio. Parecíamos argentinos, para usar outro clichê recorrente. Ninguém foi capaz de nos calar — a não ser o gol tomado no último minuto, mas até então tínhamos feito a nossa parte.

Empatamos no campo. Ganhamos na arquibancada. E de goleada.

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Já em Brasília foi bem diferente. O perfil do público mudou consideravelmente, e a quantidade de gente nos apoiando também. Se na capital mineira não chegamos a mil pessoas no setor visitante, na capital federal éramos 20 vezes mais. Aproveito esse número para ressaltar o óbvio: são poucos os times brasileiros capazes de colocar mais de 20 mil pessoas em um estádio fora do seu estado, com ingresso mais barato a R$ 50. O que comprova que o Botafogo é um time capaz de se dar ao luxo de escolher um campo para mandar seus jogos — não acho que clubes com mais dinheiro e estrutura do que o nosso, a exemplo dos gaúchos e mineiros, conseguiriam o mesmo feito no Distrito Federal.

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Ok, mas vamos às críticas: éramos 23 mil botafoguenses, porém formamos um público frio, “de teatro”, como foi fartamente comentado nas redes sociais. Não foi bem assim: a tevê não deve ter mostrado, mas na parte superior, onde se concentravam representantes de torcidas do Rio, o pessoal cantou quase que o tempo inteiro. Só que os cantos não chegavam a “contaminar” o público concentrado na parte inferior. Estes bem que tentaram apoiar, mas diante de um primeiro tempo insípido, sem que o time criasse uma sequência de chances capazes de incendiar a torcida, ficou difícil ouvir o grito do alvinegro brasiliense. E, de fato, falta-nos o hábito de torcer, de empurrar o time mesmo quando este não corresponde em campo; não fizemos estágio probatório em Caio Martins nem residência no velho Maraca. Não temos cultura de estádio: o último jogo do Botafogo pelo Brasileirão em BsB tinha sido em 2007 (2×0 em cima do Atlético-PR, o canto de cisne do carrossel alvinegro, último jogo antes da suspensão de Dodô), e não por acaso a música-tema daquela época, o “Ninguém cala”, foi tão repetida no último sábado. Perdoai-nos, senhores, mas fizemos o que pudemos — mas também sabemos que podemos fazer melhor.

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Agora, a parte boa: em Brasília apareceu um público bastante heterogêneo na faixa etária. Muitas famílias, pais, filhos e avôs alvinegros, muitos deles envergando camisas que, pelo patrocínio, foram amealhadas ao longo de diferentes anos: Coca-Cola, Supergasbrás, Liquigás, João Fortes, Guaraviton, 7 Up, sem contar a marcante Botafogo No Coração. Pesarosamente, notei diminuto número de torcedores entre 20 e 30 anos. Por outro lado, me surpreendi com a quantidade elevada de crianças, o que aponta para um saudável rejuvenescimento da nossa base de torcedores. Essas crianças, agora vamos falar delas: elas precisam não só de um time, mas de um ÍDOLO pra chamar de seu. O sorriso delas com a aparição de Seedorf no telão, e depois ao vivo, mostra o quão importante foi a contratação do holandês também do ponto de vista da formação de uma nova geração de torcedores.

Só nós sabemos o que Túlio Maravilha fez pelo Botafogo na metade dos anos 90. Carismático e desabrido, ele conseguiu reter — com seus gols e sua marra — uma legião de pequenos botafoguenses que, sem o amparo dos pais ou de outros familiares próximos, poderiam ter bandeado para outros clubes, como tantas vezes aconteceu nos anos 1970 e 1980. Os detratores dizem que Túlio não demonstra muito rigor com os números, mas do que precisamos em nossa história, de um goleador ou de um PVC?

Muitos defendem que o Brasil tenha um plano de retenção de craques; pois bem, o Botafogo já precisou desesperadamente, e agora felizmente necessita cada vez menos, de um plano de retenção de torcedores. Esse papel foi desempenhado por Dodô, Loco Abreu, Jefferson e, desde o ano passado, tem sido marca registrada de um holandês que tira fotos com pequenos torcedores com a mesma elegância que distribui passes no gramado. Está acontecendo bem diante dos nossos olhos, basta enxergar: estamos formando uma Geração Seedorf, a ser sacramentada de vez com a conquista de um título nacional.

Mas, enquanto esse dia não chega…

Enquanto esse dia não vem, aproveito para registrar, com alegria, os múltiplos perfis da torcida alvinegra. Ainda somos, claro, como definiu João Moreira Salles no célebre texto “Elogio de uma tarde inútil”, aqueles que foram agraciados com “nenhuma promessa de alívio”, precioso documento de uma época pouco gloriosa, que pode ser lido na íntegra no link abaixo:

http://www.squadra62.com/multimidia/textos/elogio-de-uma-tarde-inutil.php

A frase “Não tem jeito, com a gente é sempre mais sofrido”, repetida por onze entre dez torcedores brasileiros como se houvesse exclusividade na angústia, certamente foi proferida pela primeira vez em General Severiano. Mas vamos celebrar essa crescente e saudável diversidade: existem muitas, cada vez mais, formas de empurrar o time na direção de uma sala de troféus tão gloriosa quanto a nossa história e nossos ídolos.

Não somos maioria no Brasil, nem precisamos ser. Somos torcedores com diferentes visões, frustrações, experiências — alguns, mais visionários do que outros; alguns, mais confiantes do que outros; alguns, menos traumatizados do que outros. Todos iluminados pela mesma Estrela. Todos com a mesma esperança.

Que, ao final do ano, o time dos otimistas tenha aplicado uma goleada no meu time, o dos ressabiados. Afinal, todos queremos vivenciar a mesma alegria, guardar as mesmas lembranças, nos juntar na mesma explosão de felicidade.

É essa união, como a do preto e do branco, que fará o Botafogo ser, em definitivo, o time glorioso que não pode perder, perder pra ninguém.

8 Respostas para “A torcida do Botafogo não existe mais

  1. Marcelo,

    Hoje vi duas entrevistas, A primeira do Rafael Marques em um programa do Sportv. Ele falou da união do grupo e do profissionalismo. Algumas perguntas foram quanto a extinção da concentração. RM disse que evitam até sair a noite para comer algo com a família. Combinam, se der vontade de comer algo, pedir por telefone e ficar em casa.
    Perguntaram pelos salários atrasados e ele disse que os mais experientes ajudam os mais novos. Nas entrelinhas, percebi que deve haver uma caixinha para ajudar os garotos, quando precisam.
    Brincando, disse que qualquer problema é pegar um vale com o “Negão”.

    A outra entrevista foi do Seedorf. Pedindo apoio da torcida para o jogo contra o inter e inteligentemente, não dando margem para questionamentos da ausência no jogo contra o galo mineiro. Disse que não adianta desestabilizar, criando situações internas pois o grupo está muito unido.

    Acho que esse ano será muito diferente!

    Abs e Sds, Botafoguenses!!!

  2. marcelo, meu caro, que texto ousado!
    julgo que suas observações são bem sensatas, embora acho que seja difícil esse seu raciocínio se disseminar na própria torcida alvinegra e, muito menos, no pensamento comum.
    eu venho observando isso nos estádios que frequento quando posso e nas redes sociais.
    parabéns pelo texto!

  3. Excelente texto, percepção aguçada e venho ao encontro das suas idéias. Sou carioca e moro em Maceió há 11 anos, então tenho poucas oportunidades de assistir no estádio o nosso time. Porém, quando vou ao RJ, pelo menos 1 vez por ano, sempre vou ao estádio, aonde quer que seja o jogo. Esse ano fui à Moça Bonita duas vezes. Porém quando vou na condição de visitante, vejo que a torcida tem outra postura, tem a postura de defender o clube , não importa se estamos em número menor, se não somos filhos do RJ, ou outra razão qualquer. Já fui a vários jogos em Recife, João Pessoa, Salvador, Aracaju e aqui em Maceió, e a sensação, como torcedor é diferente. Eu me sinto mais botafoguense quando vou ao estádio como visitante. Posso estar enganado, mas me sinto representante da nossa torcida e por isso canto o hino mais alto, reclamo mais do juiz, e vejo que quem está por ali, parece pensar do mesmo jeito.

  4. Só li o texto após o frustrante empate contra o Inter. Gostei demais e concordo com os rótulos postados. Somos críticos sim, ressabiados sim, supersticiosos sim, pouco assíduos no Rio seja em qual estádio for e numerosos Brasil a fora, em especial em DF, Minas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pará. Pois êh!
    Eu já assisti jogos do Botafogo e outros times locais em quase todos os estados brasileiros e me surpreendi com o publico, em geral uniformizado, em longínquos rincoes. Nestes locais mais distantes o aplauso substitui os cânticos típicos das organizadas e as manifestações de aprovação ou nao êh acompanhada do silencio dos discretos e tímidos mas nao menos apaixonados. Pra estes, o resultado do jogo êh importante mas o prazer de ver o seu time jogando já satisfaz.
    Moro em S. Paulo e assisto aos jogos do Botafogo por aqui. Já a todos os estádios da capital paulista, em Santos, Campinas e até Mogi Mirim. De vez em quando me arrisco a ir ao Rio, quase sempre nos jogos decisivos. Nestes a organizada puxa e os locais segue ainda que sem muita afinidade com a letra cantada. Mas bom mesmo era o Caio Martins que por ser pequeno estava quase sempre lotado e o clima era de muita proximidade.
    Lembro do Chicao, Chicao, FDP cabeçudo e orelhão, Renatooo Gauuuucho, e o indefectivel: “recordar êh viver, Mauricio acabou côn. Voces”.
    Hoje me deleito com Seedorfeeeee oba! Oba!.
    Precisamos destes idolos pra personificar nosso sentimento. Santifica-los e
    Demoniza-los e assim exercitarmos nosso paixao por esta estrela.

  5. E’ preciso nesta hora acrescentar: há velhos de mais de 70 anos (como eu) que já viram o Botafogo ser campeão várias vezes e formar com o Santos a seleção brasileira. E há crianças como os meus netos que tiveram (como os meus filhos) toda a liberdade de escolher um clube para torcer – desde que esse clube fosse o Botafogo… Esses ainda não viram e é para eles que Seedorf está jogando tanto e que Vitinho está a fazer belíssimos gols como os de ontem contra o Inter.
    E mais só uma coisinha: Há alguns anos a gente disputava lugar no Z-4. Este ano, estamos no G-4 desde o começo do campeonato.
    E isso deixa muita gente contrariada.

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