Crônica do Desafogo: O Dia Seguinte

Manhã de quinta-feira. O sol ilumina a banca de revistas.

Nela, jornais com as manchetes das vitórias alvinegras. Uma se destaca: “Cai o mito”, com uma foto do talismã Caio de braços abertos, torcida alvinegra ao fundo.

 A força de uma imagem.

De arrepiar.

Na padaria, o adesivo no vidro do balcão denuncia o time do dono. A caixa me conta que o proprietário, Seu Matos, estava feliz da vida com “o jogo”. Sim, porque não é preciso explicar; basta falar “o jogo” que todo botafoguense sabe de que jogo estamos tratando nessa quinta-feira. 

Alguns passos à frente, chego à loja oficial do Botafogo em Brasília, encravada no coração da Asa Sul do Plano Piloto. Tenho que cumprir o trato anunciado aqui neste blog no início do ano – só compraria a camisa do Loco Abreu se ele fizesse um gol em cima do flamengo em jogo decisivo. Como o uruguaio participou ativamente do primeiro gol com o cabeceio para o Herrera que resultou no tirambaço do Marcelo Cordeiro, promovo uma pequena modificação no decreto por mim mesmo firmado e considero a promessa cumprida. Gasto R$ 39,90 na camisa branca, não oficial.

Enquanto espero minha vez de pagar, observo que a cliente da frente, camisa amarela de treino autografada por Túlio Maravilha e Sérgio Manoel, está eufórica. Não parece nem um pouco preocupada em gastar mais de trezentas pilas em badulaques alvinegros – diz que vai presentear filhos e netos. Logo depois de mim, chega um senhor cinquentão, camisa oficial no peito. Procura um minivestido alvinegro para a neta de dois anos, que o acompanha. Ela prova o vestido, caimento perfeito.

O avô conta que está fazendo uma travessura: o pai da garota é vascaíno, a avó é flamenguista. Nenhum deles sabe do presente, mas logo saberão porque a garotinha, feliz com o presente, quer ficar usando o vestido que o avô acabara de comprar.

–  Ela vai ser Botafogo como eu! Já ensinei as palavras “gol” e “Fogo” para ela!

Ao fundo do balcão da Fogão Shop, um painel gigantesco com fotos de Túlio Maravilha e Nilton Santos, ambas autografadas. Penso na honra de torcer para um time que sabe valorizar seus grandes ídolos; dou uma paquerada na nova camisa em homenagem à Enciclopédia. É linda, mas fica para depois, em condiçõe$ mais favorávei$. 

Também vejo, no cabide, a camisa cinza que foi “batizada” na goleada para o vasco. Fico surpreso: “pessoalmente”, a camisa é muito mais bonita do que apareceu na tevê, mas identifico o problema que me incomodava antes mesmo do primeiro gol do Dodô: trata-se de traje de passeio, jamais de competição.

O telefone da loja toca duas vezes em menos de dez minutos. São torcedores querendo saber se ainda há camisa oficial para vender. “Divide em três vezes no cartão”, esclarece a vendedora. Entra uma garota, não mais que 20 anos, à procura de uma camisa modelo baby look. Sai da loja com uma sacola na mão.

Quando deixo a loja, há mais três torcedores chegando. Sorriso no rosto, querem camisa para os filhos, querem ingresso para o jogo do Botafogo-DF contra o Gama, sábado, no estádio que leva mais um nome de ídolo: Mané Garrincha.

Querem, enfim, curtir o fato de ser botafoguense. Porque puderam vibrar com um time que, mesmo fraco, soube jogar com a raça há tanto tempo pedida pela torcida.

Deixo a loja, saio caminhando pelas alamedas sombreadas da Asa Sul.

No térreo de um prédio residencial (bloco, como nós chamamos aqui em Brasília), avisto uma camisa alvinegra em um garoto de nove anos, que sobe e desce rampas montado em sua bicicleta. Veste uma camisa que parece com a do time de 2007. Me aproximo e pergunto seu nome:

– Rafael.

– Viu o jogo de ontem, Rafael?

– Claro!  (abre um grande sorriso)

– E aí resolveu vestir a camisa?

– Sim, tenho muitas!

–  Quem te deu? Seu pai?

– Foi. Mas meu pai é vascaíno.

– E alguém da sua família é botafoguense?

– Não, eu sou único.

– Ah, é? E como você virou botafoguense?

– Ah, não sei. Eu sempre fui Botafogo. Acho que é por causa da estrela (aponta para o peito). Essa camisa é linda!

– Quem é o jogador que você gosta mais do Botafogo?

– O Lucio Flávio. E você?

Aí ele me pega de surpresa. Porque sei, de cabeça, quem são os jogadores que mais me causam urticária: Alessandro, Eduardo, Fahel, o próprio LF, enfim, “os renegados”. Mas não me vem à cabeça um nome admirável de imediato (perdão, Jefferson!). Lembro da camisa recém-comprada e respondo:

– O Loco Abreu…

– Ah! Você viu que ele tentou fazer um gol de mão ontem???

Rafael comenta e depois dá uma bela risada.

Troco mais duas ou três palavras com ele e vou embora.

Mais tarde, fico sabendo na repartição que, no local onde atualmente trabalha o presidente da República, houve uma cena insólita: o motorista de um caminhão de entregas, ao sair da área restrita à presidência e por isso intensamente vigiada, sacou uma bandeira alvinegra da boleia e começou a agitá-la, gritando a plenos pulmões, para Lula e o Brasil inteiro ouvir:

– Fogão! Fogão!

O Pereirão me conta uma história parecida ocorrida em João Pessoa. Imagino que cenas assim se repetiram por todo o Brasil. Sem câmeras de tevê para registrá-las, ficarão nas lembranças individuais dos torcedores de diferentes idades e origens. Serão segredos compartilhados.

Na repartição, percebo alguns rubro-negros pelos cantos, tentando encontrar entre eles as explicações para a tão inesperada derrota. Alguns começam com o papo:

– Mas só foi uma semifinal…

Eles sabem, porém, que não foi só isso. Que o time do Botafogo é tecnicamente muito inferior ao do flamengo, e que eles nunca estiveram tão fortes, com dois centroavantes de nível de seleção brasileira.  E que o time deles não perdia no Maracanã desde agosto do ano passado. E que precisavam da Taça Guanabara para jogar a Taça Rio sem compromisso, dedicando-se com maior ênfase à Libertadores. E que… chega de falar do outro. Sinceramente, agora pouco importa.

As palavras dos torcedores adversários vão se desvanecendo ao longo do dia. Viram meros resmungos de perdedor. 

Volta para a minha lembrança o Rafael, que torceu solitariamente pelo Botafogo na noite de quarta-feira.

E me vem à mente a imagem do pequeno alvinegro pedalando pela cidade. 

Alegre com o seu time, sem traumas do passado para carregar, sem superstições para exorcizar.

Simplesmente feliz.

Manhã de Sol. Estrela no peito.

 

 Foi um dia iluminado para o Rafael.

Foi um dia de desafogo para todos nós.

Fotos: Site oficial do Botafogo, Lancenet! e FogoEterno

18 Respostas para “Crônica do Desafogo: O Dia Seguinte

  1. Que beleza de crônica! Se não fosse o parentesco, diria: até parece que foi escrita por Paulo Mendes Campos.
    As crônicas ( sua, Marcelo e do PMC), podem não ter o mesmo valor literário mas, numa coisa, elas são fundamentalmente iguais – ambas têm o pleno (e único) sabor alvinegro, aquele legítimo que só os que torcem pelo Glorioso, o da estrela solitária, podem sentir.
    Daí porque, apesar de alguns contratempos, persiste em nós a máxima (parece-me de Flávio Rangel):
    – Eu não gosto de futebol, eu gosto mesmo é do Botafogo…

  2. “Logo depois de mim, chega um senhor cinquentão, camisa oficial no peito. Procura um minivestido alvinegro para a neta de dois anos, que o acompanha. Ela prova o vestido, caimento perfeito.

    O avô conta que está fazendo uma travessura: o pai da garota é vascaíno, a avó é flamenguista. Nenhum deles sabe do presente, mas logo saberão porque a garotinha, feliz com o presente, quer ficar usando o vestido que o avô acabara de comprar.”

    Companheiro, somente um trecho do seu artigo. A partir daí as lágrimas insistiram e insistem em escorrer pelas minhas faces.
    Considere o fuso horário acreano e poderá advinhar que me encontro almoçando e navegando no pc.
    Talvez eu estivesse segurando essas lágrimas desde a qurta-feira a noite. Tivemos um blecaute aqui em Xapuri que foi das 18:00 h e pouco até além das 4:00 h de quinta. Sem tv, sem telefone fixo e o jeito, em um bar no escuro, acompar ao jogo através de ligações e mensagens via celular. Mas foi muito sofrido. Lá pela uma da matina que eu soube que o segundo gol não foi de falta e Caio o autor.
    Até hoje estou feliz porém um pouco frustado por não ter estado junto com o meu Clube. Acima do meu sofrimento pessoal está a Alegria Coletiva.
    É !!!! O almoço pode me fazer mal.
    Abraços e saudações Botafoguenses,
    Luis Celso

  3. Nelson Rodrigues deve estar rindo lá em cima e lamentando: “Por que não fui botafoguense”

  4. Supermomento: Celular toca no escuro de Xapuri – Acre. A Mãe dos meus Filhos: – Empatamos. O nosso gol foi mais bonito !!!!
    Ao fundo a voz da minha linda Filha (Única entre cinco): – Foi o número seis !! Foi o número seis !!!!

    • Minha linda Filha liga de Brasília e avisa que irá usar a Camisa novamente porque ela deu sorte.
      Aí foi que eu me sensibilizei que a mensagem ao fundo na quarta era de que ela estava usando a camisa do Nilton Santos recentemente recebida.
      Abrigado minha Filha, mas Papai tem que estar totalmente concentrado contra o vasco agora.
      Abraços e beijos,
      Luis Celso

  5. Celular toca no escuro de Xapuri – Acre. Um amigo vascaíno, impedindo uma ligação da Mãe de meus Filhos diretamente de Brasília, diz que houve um gol no Maracanã. E pergunta se eu acho de quem foi. Contendo-me para não dizer um palavrão respondo que eu torço para o Botafogo. Ele diz que eu acertei. – Foi um gol de falta, diz ele.
    Mensagem no celular paralelamente chegando de Brasília: “Eu te Amo, Eu te Amo, Eu te Amo”
    A vida é linda !!!!
    Abraços e beijos,
    Luis Celso

  6. Pereira, nem precisava dizer mas desde o seu artigo as emoções que em mim estavam enrustidas afloraram. Depois do almoço voltei ao trabalho e de lá saí por volta das 20:00 h
    Chegando em casa corri logo para o Fogo Eterno. Navegava nas Comunidades Botafoguenses do Orkut, no site do Botafogo e retornava para ler o seu artigo.
    Nessa brincadeira até agora não consegui fazer algo para que o sono chegue. Fico relembrando cada momento em que passei desde que as luzes apagaram aqui em Xapuri.
    Ao final o saldo foi superpositivo.
    E que continue assim.
    Amém.
    Deus quer. Nós queremos.
    Abraços e saudações Botafoguenses,
    Luis Celso

  7. Crônica inspirada e ‘estrelada’, Marcelo. Saudações botafoguenses e vamos à vitória amanhã!
    Um abraço,
    Humbertinho

  8. Marcelo,

    Como o Luis, as lágrimas brotam na face ao ler a coluna.
    Imagino como será quando tivermos uma diretoria competente e que só pense na instituição BOTAFOGO! A nossa torcida está ávida por crescimento e conquistas!

    Luis, tempos atrás, estive no Acre trabalhando e pode deixar que gritarei por ti no domingo. Promessa!

    Abs e Sds, BOTAFOGUENSES!!!

    • Amor Verdadeiro e Puro pelo Botafogo.

      Quem possui mente magnânima jamais fala com voz estridente nem toma atitudes ríspidas. O amor se realiza somente a quem possui mente magnânima. Se tem amor, mas a mente é estreita, o amor se transforma em ódio. O amor é verdadeiro e puro quando jamais se transforma em ódio ou ciúme.
      Abraços, beijos e saudações Botafoguenses,
      Luis Celso

  9. que coisa foda! isso é botafogo !

    amo esse time na moral.

  10. Aaahhhh a cliente com a camisa amarela do treino na loja era EU!!! Realmente nem liguei de gastar aquela grana toda, valeu a pena. Mas não eram para filhos e netos, porque não tenho nem um nem outro, mas eram todas para os meus sobrinhos, to cuidado dos futuros torcedores!!! =)
    Valeu cada centavo gasto!

Deixe um comentário